domingo, 27 de junho de 2010

luis carlos patraquim

Luis Carlos Patraquim
A CANÇÃO DE ZEFANIAS SFORZA

1. Aqui está um livro que é uma verdadeira pincelada de Maputo com cheiro a Lourenço Marques. Mostra as passagens da cidade de um momento histórico para outro com base nos fenómenos sociais que ocorreram no país. Quer dizer, independência, revolução, fome, guerra, paz, capitalismo, todos eles emprestaram à urbe características diferentes e determinaram sempre a alteração do seu status e modus vivendi. Não sei se haverá outra cidade no mundo que tenha passado por tantas e diversas metamorfoses em tão pouco tempo: 35 anos, cerca de 10 formas de viver diferentes.
2. LCP mostra o período pós-independência, a pluralidade de raças, crenças, hábitos que é Maputo e, um pouco atrás, a relação do narrador (que é participante) com os hindús, importando, aí, referir que neste nosso beco também temos (há muito tempo) os chinas, e outras comunidades que se fixaram e sem as quais não se pode desenhar Maputo.
3. “Tenho sangrado invisivelmente. Quando chegares, pode ser que eu esteja em viagem. O meu filho Augusto, aquele que nunca te apresentei, nem os outros, é verdade, é agora um tropeiro forçado, dizem que combatente. E eu vou procurá-lo”.
4. É um texto interessante, onde sobressai uma ligação literária que se estabelece entre o narrador e a personagem: O narrador fala de si próprio quando, na verdade, o que pretende é falar da personagem e mais ainda do meio envolvente da Capital – da Nação.
5. As alterações sociais que decorreram da guerra são um aspeto que pode ser particularizado, sendo certo que, hoje, em Maputo já não se encontram as recordações da guerra; os seus traumas, os seus efeitos, agora aparecem sem uma forma explícita e clara, mas dentro de comportamentos muitas vezes incompreendidos no contexto atual.
6. “As intermináveis bichas que começavam a surgir por toda a cidade. Descrevê-las-ei? Zefanias desenrascava-se com o Agostinho, que, por sua vez, se desenrascava com outro, e por aí atrás até ao camarada estrutura de algum armazém, uma loja do povo, numa espécie de xitique de solidariedades clandestinas”.
7. É uma narrativa escrita com tinta da china: Uma palavra molha a tinta, outra palavra… assim sucessivamente. Alcança o objetivo de rodar por 35 anos de Maputo (não creio que atinja todo país) através do Zefanias – também ele um produto (de origem italiana) da miscelânea entre cores, ás vezes absurdas, que a Capital – Nação recebe faz séculos. A boa gente (sobretudo mulheres) está no país inteiro e a capital não é exceção. A saga por cá prossegue e tá-se bem: pakistaneses, libaneses, nigerianos, iranianos, congoleses…
8. Não é um texto Made in Mozambique, valendo, porém, dizer-se que é Made by Moz. Pode, por conseguinte, servir perfeitamente como referência de como se vai vivendo por estas bandas. Tem a abordagem intelectual que, aliás, nunca faltaria ao LCP e a literariedade que se impõe a uma estória baseada na história a este nível.
9. “Esses que andam aí, que fiquem deslumbrados. Querem casas com torneiras de oiro, dez quartos quando só podem dormir num de cada vez, four by four, roupas de Paris, amante na flat, catorzinhas ocasionais, mulher oficial sempre a perguntar se a conta no banco está aumentada. Essas biografias são incompatíveis comigo”.
10. O autor deve respeitar a vontade do leitor? É um debate com pano para muitas folhas, linhas, palavras e expressões. Seja como for, aqui, parece que respeitou todas vontades, sem nunca deixar de passar a sua mensagem do modo e na dimensão que bem entendeu. No entanto, quanto ao novo riquismo, stop, alto aí: Não me zango com ele; pelo contrário, até acho que deve continuar a existir e a florescer. Que será do país sem ricos?
11. Viajar para o espaço é uma possibilidade que a ficção abre. Neste livro abre-se uma porta para uma viagem ao imaginário de Maputo, cidade na qual em muito pouco tempo se deixa de sentir o cheiro anterior (passado, de ontem, da semana passada) e ponto em que, logo que chegou a liberdade, se iniciou o processo de criação de um estado novo.

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